quinta-feira, 27 de novembro de 2008

E você, já matou alguém hoje?

Escolhi uma profissão que lida diretamente com a realidade das coisas. Além disso, fui mexer com imagens, televisão. Então, muitas vezes vejo e ouço coisas que não vão ao ar pelo absurdo que são. Já vi cadáveres em putrefação, cabeças sem corpo, sangue, trechos de entrevistas que as pessoas falam coisas horrorosas e até cenas de sexo que um ex-namorado decidiu espalhar por celular para desmoralizar a namorada menor de idade. E de tudo isso resguardamos nosso telespectador. Muitas vezes quem está em casa só vê imagens nubladas ou com mosaico, mas nós vemos tudo.
Baldes de realidade assim na cara me fazem refletir sobre nós, os seres humanos. Há cerca de duas semanas editei uma matéria sobre uma menina de 10 anos que tinha encontrado uma ossada humana, a vítima, enterrada debaixo de uma mangueira deveria ter entre 14 e 16 anos. A menina que a encontrou estava assustada e chorava dizendo que estava com dó já que aquilo poderia ter acontecido com qualquer um, até mesmo com ela. Até aí, tudo bem. Uma atitude esperada para seres humanos dotados de compaixão.
Mais na frente, a repórter Vanessa Lima perguntava para uma moradora do bairro se ela tinha ficado assustada com a descoberta da ossada ali perto da casa dela. Para meu espanto, a mulher disse que não! Ela disse que até achou que fosse osso de cachorro! (aposto que ela teria outra opinião se fosse um parente dela).
Alguns dias depois fui editar uma matéria sobre um bairro de Aparecida de Goiânia que está servindo como local de “desova” de cadáveres. A repórter Manuela Queiroz perguntou a uma moradora do setor se ela ficava com medo. E, mais uma vez para meu espanto, ela disse que não, porque os crimes não acontecem com gente do bairro. E ainda acrescentou: “Quando a gente vê os urubus voando num lugar, a gente até já sabe o que é. Daí, chama a polícia”. (A que ponto chegamos! Desculpem, mas não acho que isso é normal).
Mas o auge dos banhos de realidade que venho tomando foi ontem. Estava eu, em casa (dessa vez não fui eu quem editou a matéria) assistindo a entrevista feita por Fernanda Arcanjo com a namorada de Mohamed d’Ali, que matou e esquartejou a inglesa Cara Burke. A namorada, Hellen Victoy, anunciou que vai se casar com o assassino confesso no fim do ano. Até aí, tudo bem, problema dela! Mas quando a moça foi perguntada se ela não acha que Mohamed é um monstro, ela veio com essa resposta: “Errar todo mundo erra, matar todo mundo mata. Quem nunca errou? Se você está no trânsito e atropela uma pessoa, matou do mesmo jeito. Agora, só porque ele esquartejou?” (daí eu pensei: Santo Deus, em que mundo eu estou? Será que meu cérebro foi muito afetado pelo colégio de freiras que eu estudei? Porque eu não acho que matar é normal!).
Mas a entrevista ainda não tinha terminado. A moça ainda disse que acha que o crime cometido pelo namorado só teve tanta repercussão porque ele matou uma inglesa loira dos olhos azuis, porque se fossse uma “pessoa de cor, do cabelo ruim” (são palavras dela) ninguém estava nem aí. Coisas assim não podem cair na normalidade. Encontrar corpos não é normal, tirar a vida de alguém não é normal. É só pensar que isso poderia acontecer com uma pessoa que amamos. Os seres humanos deveriam exercitar mais a compaixão ou daqui uns tempos estaremos contando quantos já matamos.


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quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Uma tela em branco

Às vezes podíamos ter a chance de reformular a nossa vida como uma tela em branco. Um dia olharíamos para o quadro e se a pintura não estivesse legal, era só jogar o balde de tinta branca, ou comprar uma nova tela.
Aí, sim, começaríamos outro esboço. Um outro desenho, quem sabe. Algo diferente de antes ou apenas aprimoraríamos o anterior. Podíamos também mudar as cores ou simplesmente mudar o tom. No estremo da mudança, podíamos até mudar os tipos de tintas.
Re-fazer, re-montar, aprimorar, melhorar, mudar...

Mundo, mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não uma solução.
Mundo, mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.” (Carlos Drummond de Andrade)


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segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Ainda me lembro do almoço de sexta

O Almoço dos Barqueiros, Auguste Renoir


Pra onde será que olha a moça no centro do quadro?
Em quem ela pensa?
Será que o pensamento é correspondido?
Ou será que ela tenta simplesmente esquecer?
Vai ver que ouviu algo que não queria durante aquele almoço e agora vai ter que mudar.
Vai ver ela só se sente diferente.
Talvez ela só queira fazer parte.
E se ela quiser algo novo?
E se ela estiver pensando no que fazer?
Ficar ou partir?
Pra onde?
Será que um dia temos respostas?
Ou certezas são pra poucos?


Obs.: Leia ouvindo Janta, de Marcelo Camelo. http://www.youtube.com/watch?v=8jHb7qzZRvc

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segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Corpo fatiado falante ou Como sair da rotina

Imagine que você vai visitar uma amiga e quando chega ao quarto se depara com o corpo dela fatiado dentro de um saco plástico. Pânico total, né? Mas o pior ainda está por vir: o corpo fala com você. Não, não é alucinação. O corpo fala, não o espírito, alma de outro mundo ou algo assim, a matéria fala.
Deve estar pensando: O corpo pede ajuda para punir o culpado pelo crime ou quer um justiceiro que se vingue do homicida responsável por aquele “fatiamento”. Certo? Errado! Na verdade o defunto, a defunta no caso, quer ajuda para arranjar um outro corpo em um estado melhor. Bem melhor!
Tudo bem, tudo bem. Eu explico direito essa história pra você que está achando isso sem pé nem cabeça. Vamos por partes. Na verdade estou falando do curta-metragem “Semi-novo”, de Rodrigo Valle e Marcos Vinícius Brito. Mais aliviado agora? Vamos ao filme então.
“Semi-novo” conta a história de Marcos (Pedro Plaza), um rapaz super, hiper, mega certinho. As gavetas dele são muito arrumadas, roupas dobradas com o mesmo tamanho e meias enroladas exatamente iguais. Ele chega todos os dias à padaria às 7h55, em ponto, pede sempre a mesma coisa, as mesmas excentricidades como mixto quente tostado só nas bordas.
Marcos não faz nada que não esteja programado. Rotina, meus caros, muita rotina. O moço tem uma agenda onde anota todos os compromissos, horário por horário, chega ao extremo de escrever os minutos certinhos, certinhos. Entre os compromissos do dia de Marcos estão visitar a amiga Gabi e o grupo de estudos.
Mas a visita dará uma guinada na vida de Marcos. Como vocês já sabem, ele encontra a amiga fatiada dentro de um saco e, pelo bem da amizade, sai com ela para arranjar um corpo novo ou melhor dizendo, semi-novo.
Ele leva o saco em um carrinho de mão e assim eles conversam pelo caminho. Conversas que vão desde o que é normalidade até como Marcos se refugia do mundo utilizando aparatos tecnológicos como um MP4.
O senhor certinho leva a amiga para o hospital. Diante do absurdo daquilo, ela diz que não quer se transformar num Frankenstein. Então, eles seguem rumo ao IML. Lá, o atendente (Marcos Lotufo) ajuda os amigos a acharem um corpo semi-novo para Gabi.

(Aviso importante: Se você não quer saber o fim do filme, pare de ler aqui).

Ela escolhe, mas não vemos o corpo escolhido. Corte, mudança de plano e já vemos os dois amigos andando na rua. Só que ao lado de Marcos está um homem (com roupa de quem saiu do IML) falando com a voz de Gabi. Ela/ele agradece o amigo pela ajuda e diz que vai sair para aproveitar as novas possibilidades do corpo.
Diante de tudo aquilo, Marcos joga o MP4 e a agenda no lixo. Um homem passa e atira um toco de cigarro no chão. Marcos pega o cigarro e sai fumando.
Por que não?
É claro que a situação do filme é exagerada e nunca vai acontecer. Mas, por que não? Às vezes precisamos mudar e ficamos esperando grandes coisas acontecerem na nossa vida. Talvez não precisemos. Talvez é só uma questão de encarar a realidade de frente, ver o outro lado da balança e se perguntar: Por que não?

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domingo, 9 de novembro de 2008

Uma questão de escolha

Era só uma bonequinha graciosa e triste na vitrine da loja de brinquedos. Via as pessoas passarem pra lá e pra cá sem que a levassem para casa. Sonhava com uma menina em especial. Uma menininha que sempre passava ali na porta e ficava admirando-a.
Às vezes a menina entrava, abraçava a boneca, conversava com ela. Aqueles eram dias doces, mas quando a criança não vinha, a boneca ficava ali com o olhar perdido olhando para a rua e esperando. Era uma espera paciente e cheia de ilusão.
A bonequinha ficava a pensar que um dia poderia estar definitivamente nos braços daquela que havia escolhido como dona. Nos sonhos a menina a pegava pelos braços, rodopiava, dava-lhe beijos e a boneca dormiria nos braços dela. Seriam dias felizes.
Sonhou, sonhou a boneca. Contentava-se com nesgas de amor, restos de tempo, pequenas conversas ao pé do ouvido e olhares fortuitos pela vidraça.
Um dia, perto do Natal, a menina entrou pela porta da loja. A boneca viu que havia algo diferente naqueles olhos e um sorriso ainda mais iluminado. A bonequinha desejou ardentemente que aquele fosse o dia em que ela sairia dali para sempre nos braços da que havia escolhido para dona.
A menina entrou correndo, pegou uma outra boneca e disse com todo amor: “É essa!”. A mãe pagou, a dona da loja fez o embrulho e a menina saiu saltitando com o novo brinquedo. Não sem antes dar um beijo na testa da boneca da vitrine.
A boneca ficou atônita. Naquele dia o coraçãozinho dela de boneca chorou por ter sido preterida. Não queria saber como era a outra, não queria saber quais motivos haviam norteado a decisão da garota. Ela só se sentia como aquela que não foi escolhida. E sentir-se assim era muito ruim.
Não quis mal a menina por aquele ato, era só uma questão de escolha. Pode ser que no próximo Natal, quando o outro brinquedo estivesse gasto, a boneca da vitrine fosse escolhida. Pode ser que outra menininha a escolhesse. Muitas coisas podem acontecer e as bonecas não podem prever o tempo.
Naquela noite ela decidiu não sonhar mais. Fechou os olhos e só dormiu.

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quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Vento

Naquela noite em que não dormiu sonhou com uma tarde quente. Um vento fraco roçava em seu rosto. E ele estava lá ao lado dela, como há muito tempo não faziam. Mas dessa vez era algo novo. Naquela tarde eram só os dois no meio de uma multidão. Mesmo assim, estavam sós com seus pensamentos perigosos. Ele cantava e falava de filmes. O tema era o vento. E era pelo vento que ela queria ser levada, juntamente com ele pra muito longe dali, pra algum lugar que não existisse culpa.
- Sugestivo, não?
- ...não nos deixeis cair em tentação...
- Mas não deixa de ser sugestivo, não?
Toda a pele dela, os poros, os cheiros, os sentidos que ficam escondidos disseram secretamente, os desejos inconfessáveis responderam: É tudo o que mais quero.

“Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu”

O vento continuava a soprar em outro lugar.

Música: Valsa Brasileira, Chico Buarque e Edu Lobo.

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