sábado, 22 de maio de 2010

Por Alice

Pegou a carta, dobrou e guardou no bolso da camisa, bem perto do peito. Tinha que impedir essa loucura de Alice, afinal tinham sido feitos um para o outro, ele sentia isso.
Correu até a caixa de pertences e apanhou tudo o que poderia vender. Empenhou até mesmo as jóias que a mãe havia deixado de herança. É que perto de Alice ele esquecia do resto do mundo.
Correu até a estação e tomou o primeiro trem para o litoral, dez horas de viagem. É que perto de Alice o coração batia mais forte.
Desceu do trem, correu até o porto e entrou no primeiro navio que atravessaria todo aquele imenso oceano que os separava. É que perto de Alice as pernas dele tremiam.
Naqueles meses sentiu enjôo, fome, tédio e vontade de pisar em terra firme. Mas com Alice ele pensava no futuro.
Uma noite a tempestade veio forte, balançou o navio, sacolejou, o jogou para lá e para cá, até que naufragou. Mas ele não podia morrer porque ainda não havia beijado Alice e é claro que aquela existência só estaria completa quando os dois estivessem juntos.
Se debateu na água, ora afundava, ora vinha à superfície. Lutou contra o mar revolto, se agarrou a um pedaço do navio, acordou boiando. Alice tinha olhos cor de mel.
Ficou à deriva, rezou, pediu a Deus, tomou chuva, pegou insolação, teve medo dos tubarões. Mas Alice tinha cabelos anelados e louros, como um anjo.
Um dia apareceu um navio cargueiro que o resgatou. Como tinha vontade de ter noites de amor com Alice.
Foi levado para um hospital em terra firme. Teve alta. Trabalhou, juntou dinheiro, viajou. Pegou trem, ônibus, andou a pé, pediu carona e finalmente chegou à cidade de Alice. Enquanto caminhava à procura do endereço ia pensando no que fariam dali para frente. Amar-se-iam todos os dias, ele deixaria poemas para ela todas as manhãs antes de trabalhar, dançariam ao entardecer, ririam juntos, correriam pela casa, teriam filhos, contariam para os netos aquela incrível história de amor que começou um dia logo depois da saída da folia.
Sentiu o coração pequenino como se o peito o estivesse comprimindo, as pernas ficaram bambas. Estava do outro lado da rua quando, de repente, a porta da casa se abriu. Algumas crianças saíram correndo, uma, duas, três... seis, atrás delas uma negra. Então ele ouviu uma voz que veio de dentro da casa. Sim, era Alice! Respirou fundo, se preparou para aquele tão esperado momento. Ela finalmente apareceu. Ficou encostada no parapeito da porta ralhando alguma coisa com os meninos.
Aqueles não eram os olhos meigos de Alice, aquela não era a face doce de Alice, aquela não era a voz serena de Alice. Ela estava machucada pelo tempo, endurecida. Então ele relembrou a carta: “Está tudo acabado entre nós, tudo não passou de um amor de crianças. Vou me casar com outro”. Naquele instante Alice pareceu tão gente. Podia ser? Sim, Alice não passava de mais um alguém comum.
O coração já não batia acelerado, as pernas não tremiam, já podia pensar em todo o mundo. Virou a esquina e foi embora. Desapareceu como se nunca houvesse estado ali.

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3 comentários:

Lian Tai disse...

Já falei que sou sua fã?

Ana disse...

Amores como os de Alice estão o tempo todo a bater nas nossas portas. A morre quando vista de perto.

Mayara Vila Boa disse...

Obrigada, Lian!
Fico muito feliz e emocionada em ler isso!