quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Palavras sem tradução

Ele era o projetor da única sala de cinema da cidade. Ela, a professora de línguas do internato para moças. Ela falava inglês, francês e espanhol. Ele, analfabeto. Algo os unia: o amor pelo cinema.
Todas as quintas-feiras ela assistia a matinê. Ele já sabia e ia esperá-la na porta do cinema. Ela chegava sempre 15 minutos mais cedo. Ele gostava de vê-la virando a esquina, vestido longo, cabelo preso rabo de cavalo, óculos, andava com passos tímidos e um sorriso encantador. Ela passava e o cumprimentava e a ele restava suspirar.
Ele estava apaixonado e ficava imaginando que ela era a mocinha de cada filme que projetava na tela. Ele era sempre o mocinho que a salvava dos piratas, que a buscava num carro luxuoso, que a levava para jantar na cobertura de um prédio de Nova York ou a convidava para dançar no baile de máscaras. Mas o que ele mais gostava era dos beijos.
Ele ficava imaginando como poderia conquistá-la e, um minuto depois, pensava que com certeza ela nunca olharia para alguém como ele, que nem sabia escrever. Uma tristeza invadia sua alma. Mas aquilo durava no máximo até a quinta-feira, quando ela vinha novamente. Quando ele a via sentia o coração acelerar, as pernas tremer e a mão gelava. Era uma sensação boa e ruim ao mesmo tempo. Como se ele não pudesse coordenar a si próprio.
Um dia, ao ver uma fita lá pela décima vez, teve uma idéia. Prestaria atenção nas falas dos filmes e decoraria o que o galã falasse na hora em que a mocinha mais se emocionasse. Então, ele falaria para ela. Assim, ela ia pensar que ele era estudado.
Chegou o novo filme. Daqueles bem românticos que fazia as moças saírem chorando do cinema. Ele pensou que era a hora de colocar o plano em prática. Escolheu uma cena e ficava repetindo o que o mocinho falava para a mocinha do filme. Mesmo sem entender o que era dito, via que a mocinha ficava tão feliz que beijava o mocinho.
Então, na próxima quinta-feira, tal qual o galã do filme, ele esperava a professora com uma rosa vermelha na mão. Quando ela o cumprimentou, como de costume, ele entregou a rosa e disse: “A gift for you”. Ela arregalou os olhos surpresa, abriu um sorriso, pegou o presente e disse alguma coisa que ele não entendeu. Mas pelo jeito ela havia gostado.
Naquele dia, ele ficou eufórico! O plano havia dado certo.
Na outra quinta-feira, ele a esperava: “Tu es très belle”. Ela olhou para ele de um jeito carinhoso, riu mostrando as covinhas do rosto, falou alguma coisa naquela língua que ele não conhecia e entrou. Daquele jeito ela ficou ainda mais linda.
Ele não conseguia parar de pensar na amada. Na outra semana, quando ela chegou, ele beijou a mão dela e disse: “Te echo de menos”. Ela, sem pensar muito, o beijou no rosto de tanta felicidade. E ele, ao sentir os lábios dela pensou que realmente a amava e que ela já fazia parte da vida dele.
Na sessão seguinte, o projetor estragou e ele não pode ir para a porta do cinema. Teve que consertá-lo. O filme começou atrasado. Da janelinha da sala de projeção ele viu onde ela havia se sentado. Toda hora ela olhava para trás, na direção em que ele estava. Ele, com o coração aos pulos, ficava se perguntando se ela o procurava.
A sessão acabou. Ele ajeitou tudo o mais rápido que pode e saiu correndo para ver se ainda a encontrava. A alcançou quando ela virava a esquina. Chamou por ela. Ela pareceu feliz ao vê-lo. E ele pegou a mão dela e disse como no filme: “Give me a kiss, darling”. Ela fechou os olhos e foi se aproximando dele. Até que o beijou. Ele sentiu que aquele beijo era melhor que todos os beijos dos filmes que havia visto.
Saíram dali de mãos dadas. Foram até o café da praça onde conversaram sobre cinema. Ela se mostrou muito simples, apesar de todo o estudo que tinha. Ao contrário do que ele pensava, ela não riu dele enquanto ele falava, muito pelo contrário, ela prestava bastante atenção. E até disse que ele era diferente de outros moços que ela conhecia que não sabiam tratar bem uma dama.
Sempre se viam às quintas-feiras e ele falava uma das frases que ouvia no cinema. Saiam depois para conversar no café da praça. E de tanto “Ma cherry”, “I love you”, “Sin ti no se vivir” e outras palavras que para ele só tinham tradução na expressão da mulher amada, o amor foi crescendo. Ele até resolveu comprar um anel de noivado para ela, mas esperava a melhor hora para entregá-lo.
Uma noite, ele resolveu dizer a ela: “C’est fini, c’est fini”. Ao contrário da mocinha do filme, que se atirou aos pés do mocinho, ela empalideceu e no rosto dela havia uma expressão de dor. Ela cambaleou de lado, se apoiou na mesa, olhou para ele como se fosse a última vez. Os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Ela saiu correndo. Ele ainda tentou evitar, mas ela se foi.
Nos meses seguintes ele esperaria em vão pela amada na porta do cinema enquanto se perguntava o que teria dito. Dias tristes aqueles. A única coisa que restava era o anel que tinha comprado para ela e que não tivera a chance de entregá-lo. O levava sempre no bolso, na esperança de encontrá-la novamente.
Um dia, ele estava projetando um filme quando a viu chegar. Com certeza deveria ter chegado atrasada para não encontrá-lo. Ele saiu correndo, entrou na sala de cinema, sentou ao lado dela. Quando ela o viu, tentou sair, mas ele a segurou pelo braço:
“Preciso falar com você. Eu não sei nenhuma daquelas línguas que te falava. Não sei o que te falei. Não sei ler, nem escrever. Achei que o único jeito de fazer você gostar de mim era te dizendo o que os mocinhos dos filmes diziam. Então, eu treinava o que eles falavam e repetia pra você, mesmo sem entender. Queria que você soubesse que nunca quis te enganar é que eu te amo. Você é minha querida e não consigo viver sem você. Sinto saudades. Queria que você aceitasse esse presente, minha querida”.
Ela olhou para ele e começou a rir. Um riso misturado com lágrimas. Uma cara de felicidade. Ela aceitou o anel e o beijou como nos finais dos filmes.


Texto baseado na música “Tantas Palavras”, de Chico Buarque.

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