quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O Jardim


Foto: Mayara Vila Boa

- Existe!
- Não existe e ponto!
E ela se sentiu a pior das criaturas. Era ainda menina quando o diálogo aconteceu e nunca se recuperou por completo. Sempre se pegava pensando em como o jardim que sonhara não poderia existir. Era tão simples quando pensado: nem muito grande, nem pequeno demais, do tamanho certo para caber milhões de flores, brancas, amarelas, vermelhas, todas as cores imagináveis, tinha fonte no meio, a água fazia um barulho que acalmava, o sol brilhava mais que em outros lugares e a sombra era muito fresca. “Mas então ele só existia nos filmes, nos romances e nos pensamentos de meninas bobas?”, ela estava abismada. Não sentia nem dor, nem alegria. Era um misto de surpresa com decepção: “Não existe”.
Cresceu mesmo sem jardim. Não cultivava flores, tinha medo dos espinhos. E continuava ouvindo que jardins não existiam. Às vezes, sonhava com eles, mas eram como nos filmes: bonitos e intocáveis.
Um dia chegou o jardineiro. Na verdade ele sempre esteve ali, só que mal se percebiam. Mas há momentos em que algo mágico acontece e o coração bate mais forte. Olharam para o lado e se viram. Ele prometeu que só construiria um jardim para a mulher que amasse. Ela esperou entre um afazer e outro.
O sol já estava alto naquela manhã e ela, que saia cabisbaixa, ouviu o canto de um pássaro: “Um pássaro!”. Ergueu a cabeça e se deparou com um jardim na porta de casa. O jardineiro estava lá plantando uma flor branca entre tantas outras coloridas. Era aquele o sinal: “Existe!”. Ela correu e o abraçou como nunca havia abraçado.
Mas um dia ele esqueceu de aguar as plantas. No outro, deixou a água aberta e matou algumas flores. Depois a fonte estragou. E ela não queria ver, não estava pronta para aquilo. Aguou as plantas. Brigou quando ele não desligou a torneira. Tentou consertar a fonte. Nada adiantou. Um dia ele foi embora.
Ela, sem entender, correu para o jardim e, no auge do desespero se abraçou com algumas flores. Ouviu um barulho estranho. A textura também era diferente daquela que deveria ter uma flor. Olhou bem de perto e viu que estavam amareladas. Tocou em uma flor e ela amassou. Que espanto: “São de papel!”.
Percorreu todo o jardim arrancando uma a uma. Eram flores de papel. E ela era apenas uma menina boba achando que jardins existiam na vida real: “Não existem e ponto”. Transformou o jardim em deserto. Sentou-se ao sol e deixou-se queimar. Queria ser dura e árida como aquela areia. Apareceram outros se dizendo jardineiros. E ela, sentada no seu trono banhado de sol apenas repetia: “Jardins não existem”.
Até que um dia, quando passeava imponente com seu manto de rainha:
- O céu está bonito hoje, não é?
- É!
Ela saiu apressada. Não queria conversa. Com certeza era outro alguém que, ao ver o deserto pelas frestas do portão queria o posto de jardineiro. Não tinha tempo e, afinal de contas, jardins não existem.
Quando achou que o havia despistado, eis que ele aparece em sua frente:
- Não quer olhar o céu comigo?
- Não!
Já estava cansada...
- É que durante o dia tem o sol, as nuvens e os pássaros que voam. E a noite tem a lua e as estrelas. Quanta coisa queria te mostrar... Olhe! Está vendo aquela constelação?
Ela sorriu. E o sorriso fez-se gargalhada... Ele também sorriu e as gargalhadas se juntaram.
Os olhos de um olharam no fundo dos olhos do outro e se viram. Ele se disse forasteiro: “Com certeza veio de cavalo, submarino, voando nas asas de um dragão ou de carona com algum cometa”, ela pensou.
E então veio a pergunta:
- Quais são seus sonhos?
Naquele momento ela percebeu que não havia mais sonhos, que eles haviam sido arrancados com as flores e queimados ao sol. Ela se viu ainda criança e teve a certeza que eles começaram a morrer ali: “Não existe e ponto!”.
Ela olhou para o lado, sorriu, tentou disfarçar. E ele perguntou novamente. Ela disse dois ou três sonhos inventados ali na hora. Juntou cacos de sonho do passado com o que vivia no presente e, remendando, inventou sonhos que gostaria de ter, mas não tinha.
Ela ergueu os olhos e os dele estavam ali a fitando. As faces já bem próximas. A respiração ofegante. O coração disparado. Ele sussurra: “O que eu faço agora?”
- O que tem para se fazer... Ela responde.
E então, o beijo. Depois do beijo, um abraço e uma troca de olhares que disse tudo. Quando percebeu, já estavam sentados na varanda apreciando a sombra.
No dia seguinte, ao acordar, deparou-se com uma flor plantada no meio do deserto. Era um lírio alaranjado. Era a flor mais linda que havia visto. E estava ali sem que ela houvesse pedido para que alguém a plantasse.
A cada novo dia aparecia uma nova flor no lírio. E, as flores que morriam ao entardecer não faziam isso sem antes espalhar seu pólen. Em pouco tempo o deserto já estava cheio de flores. Havia se tornado um jardim nem muito grande, nem pequeno demais, do tamanho certo para caber milhões de flores, brancas, amarelas, vermelhas, todas as cores imagináveis, tinha uma fonte no meio, a água fazia um barulho que acalmava, o sol brilhava muito e a sombra era muito fresca.
Um dia, ela acordou em sua cama macia no quarto do alto do palacete. Os raios do sol deixavam ainda mais alva a colcha branca que a cobria. Ela sentiu tanto amor quanto nunca antes havia sentido. Ela acordou e as borboletas estavam lá. Haviam entrado pela janela.


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3 comentários:

KK disse...

ahhh, Mayara
existe sim! É cultivado sempre a dois (fifty fifty como dizem). tem que limpar, cuidar, matar as ervas daninhas que crescem sem convite, molhar, adubar... um mooonte de verbos pq dá muito trabalho e mesmo quando é lindo, passa com dificuldade pelo inverno... mas, por exeriência, digo que o resultado, vale o sacrifício!
lindo texto!
bj

Anônimo disse...

Jardins existem sim! A questão é a variedade de flores que existem, e muitas vezes tentamos plantar as espécies que não prósperam naquele tipo de terreno.
Não sou agrônomo, mas sei que existem os vários tipos de terras, cada uma com suas especificidades, e algumas flores ou rosas não são próprias pra elas, não combinam. Quando se acha a rosa certa, o jardim cresce e enfeita a vida.

Anônimo disse...

May querida, lendo o texto "O jardim", consegui penetrar na história e a vi em sentido figurado, mostrando a chegada do verdadeiro amor de um homem para uma mulher. Vários homens em forma de jardineiro vieram cuidar do jardim (o coração da moça) mas apenas o último conseguiu de fato. E mostrou para ela que jardim (o amor) existe sim...
Vc é muito linda. Realmente é pura imaginação...