segunda-feira, 14 de julho de 2008

Vaga-lumes

Quadro: Noite Estrelada, Van Gogh
Quando eu era criança, tinha uns quatro ou cinco anos, não me lembro ao certo, minha tia me levava para a fazenda do meu tio avô durante as férias de julho. Íamos eu, ela e minha irmã mais nova. Não me lembro de muita coisa, mas algumas ficaram marcadas para sempre. Gostava de chegar e ver, da porteira, a casa da fazenda. Era grande, imponente na sua simplicidade, o curral ficava à esquerda de quem chegava.
Pelo cheiro, eu percebia que um mundo diferente se descortinava à minha frente. Cheiro de estrume. Sons de mugidos, cacarejar, piados, trote de cavalos. Víamos os homens primeiro. Sempre sujos da lida, botinas enlameadas, chapéus na cabeça, barba por fazer, mãos grossas que seguravam nossas mãos de criança. Depois, as mulheres simples, algumas tão tímidas que se escondiam, boas de papo, doces, com abraços apertados.
Eu me encantava com minha tia avó. Não conseguia imaginar como podia existir uma pessoa tão boa como ela. Um pouco maior que uma criança, cabelos brancos como algodão, uma voz grave e ao mesmo tempo doce. Sempre pronta a agradar qualquer um que chegasse. Me lembro que ela me abraçava, dizia meu nome no diminutivo, o que nenhuma outra pessoa fazia, e dizia que eu estava linda. Eu sorria de orelha a orelha e achava aquele elogio um máximo porque ela sempre enxergou muito pouco. Pensava que talvez ela podia ver o que os outros não viam.
Lembro-me também do desfile de comidas. Nas semanas em que ficávamos lá, eram feitos biscoitos, pães de queijo, doces, bolos, tudo o que uma criança pode gostar. Tudo quentinho e na hora. Achava engraçado quando os homens comiam arroz e feijão no café da manhã antes de ir pra roça. Gostava quando fazíamos pamonha: sempre em dias frios. Os homens cuidavam de todo o trabalho pesado, como colher e carregar o milho, as crianças descascavam e as mulheres executavam todo o resto.
Eu e minha irmã brincávamos o dia todo ora perto da bica d’água, ora perto das jabuticabeiras, ora dentro da casa. Eram dias felizes. No fim da tarde, gostava de ir ver o gado sendo recolhido para o curral. Mas eu tinha medo da noite da fazenda. Era escuro demais. Tudo iluminado com velas. À noite, aquela casa, com seus muitos quartos parecia ainda maior. Quando as velas se apagavam eu tinha medo de me perder, de perder a minha tia que estava na cama ao lado, de não encontrar nada mais que silêncio e solidão. Meu tio avô, para passar ainda mais medo, dizia que quando dormíamos, ele dependurava minha irmã e eu no telhado da cozinha. Eu ficava me imaginando de cabeça para baixo, amarrada em uma viga do teto.
Mas nesses instantes em que eu ficava com medo me reconfortava sentar lá fora, no banco de madeira em frente a casa. Eu olhava para o céu e via pontinhos piscando, aqui e ali. Eram vaga-lumes que voavam. Gostava de ver os vaga-lumes. Eles me traziam um pouquinho de calma, a lembrança da cidade com eletricidade. Eles eram pequenas lâmpadas na noite escura da fazenda. Cada vaga-lume acendia, dentro de mim, a esperança de voltar para casa e não mais ter medo da noite. Assim como hoje as suas palavras cruzaram o céu do meu coração, como flechas incendiárias em cidades submersas.

5 comentários:

Teixeira disse...

Excelente texto, faz lembrar o passado de vários leitores, porém nenhum internauta tem a clareza e o olhar detalhista que tens. Continue escrevendo, pq muitos acompanham e gostam dos teus textos.

KK disse...

Você é realmente linda!

Anônimo disse...

Muito bom o texo Vaga-Lumes...

Mayara Vila Boa disse...

Posto o comentário que a Dulce mandou para meu e-mail:
"Seu texto me remeteu aos meus temopos de menina quando passava férias na fazenda de minha tia Célia em Corumbá de Goiás. Praticamente tudo semelhante, principalmente o céu estrelado na ausencia de energia elétrica. Marcante... Parabém pelo texto rico em detalhes. Dulce"

Anônimo disse...

Legal! E é claro que também me lembrei do passado, das minhas idas na infância para a fazenda do " ti Lazo " ( tio Lázaro )em Jussara...xiiii, mas se eu for falar sobre isso, precisarei criar um Blog e escrever sem parar...rsrs ai que Saudade!!