domingo, 31 de agosto de 2008

Soneto de domingo

Abri o livro ao acaso:

"TALVEZ ferido vou sem ir sangrento
por algum dos raios de tua vida
e a meia selva me detém a água:
a chuva que tomba com teu céu.

Então toco o coração chovido:
ali sei que teus olhos penetraram
pela região extensa de minha pena
e um sussuro de sombra surge só:

Quem é? Quem é? Mas não teve nome
a folha ou a água escura que palpita
a meia selva, surda, no caminho,

e assim, amor meu, soube que fui ferido
e ninguém falava ali senão a sombra,
a noite errante, o beijo da chuva."
(Pablo Neruda)

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Na quarta esperando acordar na segunda

Só estou num daqueles dias em que queria acordar já estando na segunda-feira
Sabendo do que se passou no fim de semana
Se deu tudo certo ou se esperei demais
Se é hora de rir ou chorar
Talvez eu acorde cantarolando alguma música bem bonita
Talvez eu simplesmente acorde e pense: Que venha a próxima semana!

Enquanto isso, fico aqui escutando Chico:
"Esperando, esperando, esperando, esperando o sol
Esperando o trem, esperando aumento para o mês que vem
Esperando um filho prá esperar também
Esperando a festa, esperando a sorte, esperando a morte, esperando o Norte
Esperando o dia de esperar ninguém, esperando enfim, nada mais além"

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A Eternidade e um Dia

“Quanto tempo dura o amanhã?”
Um menino e um homem se encontram nas ruas da Grécia. O menino foge da guerra da Albânia, das bombas, dos bebês chorando a noite, das milícias armadas. O homem passou a vida toda exilado dentro de si mesmo, do trabalho e dos livros que escrevia.
Os dois se unem. Uma união marcada pelo medo. Medo do que virá. Ambos sabem qual será o ponto de partida, mas desconhecem a chegada. E não lhes resta tempo. Não podem ficar mais que algumas horas juntos. A história de um acalma o outro, ou será que a história de um faz com que o outro se esqueça de sua própria história?
O homem conta ao menino a vida do poeta, que sem saber o grego, comprava palavras para compor seus poemas. O menino passa a comprar palavras também. Palavras para compor uma vida longe da guerra. O homem já mexeu muito com palavras, talvez já não lhe restem tantas. Mesmo assim, o menino lhe ensina a palavra que significa ‘tarde demais’. Duas vidas que se encontraram tarde demais.
Na memória do homem, a esposa já morta. Nas cartas que ela escrevia enquanto ele estava exilado dentro de si mesmo, ela pedia um dia. Apenas um dia...
Que palavra serias capaz de me vender? Será que terei um dia ou serei apenas uma vida que chegou tarde demais?

Texto sobre o filme “A Eternidade e Um Dia”, do diretor Theo Angelopoulos.


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sábado, 23 de agosto de 2008

Transformem a ópera numa peça teatral pelo bem do público!

Sábado, 23 de agosto e acabo de chegar de uma peça teatral chamada “Ópera Cínica”. Se tivesse mais dinheiro, teria ido ver “Às favas com os escrúpulos”, com Bibi Ferreira (ainda nem acredito que não a vi!). Mas tudo bem, isso serviu para que eu aprendesse que a máxima “o barato muitas vezes sai caro” funciona.
“Opera Cínica”, de Hugo Zorzetti, é apresentada pela Exercício Produções Artísticas. Com Cristhianne Lopes, Ilson Araújo, Antônio Carlos Aguiar, Christian Mariano, Ton Rocha e Amábile Nascimento no elenco. Bom, esse pessoal, consegue transformar o texto em uma comédia pastelão.
Para começar, um anjo, não se sabe porquê, é visto por todo mundo e dá palpite na vida de quem aparece no pregão de seu protegido. O engraçado é que ninguém questiona, em hora nenhuma, a existência daquele anjo, como se os víssemos aos bandos voando por aí e falando com os humanos.
Perde-se tempo demais no começo, com historinhas que não levam a lugar nenhum. Um exemplo é a de uma senhora que vai comprar um secador de cabelo e quer saber se o objeto vai dar choque ou não. Quando o dono do pregão diz que ela pode levar sem medo, a mulher tem um surto de raiva e começa a contar a história da irmã dela que comprou um aparelho de depilar e ficou grudada nele, tamanho o choque que levou!
Ah, sobre a senhora também tenho algo a dizer. Ela usava uma roupa que parecia de velha, com direito a xale e tudo, até andou encurvada no começo da cena, mas depois, quanto mais a raiva aumentava, mais a velhice diminuía. Tudo bem, vai que é um novo tratamento para rejuvenescer!
Mas a pior coisa da peça eu conto agora: como uma ópera que se preze, essa também tinha música. Que sofrimento, meu Deus! Cada vez que alguém começava a cantar, eu rezava para acabar logo. Um casal foi escalado para a parte musical. Eles não eram personagens da peça, simplesmente cantavam músicas que ajudavam a explicar a cena (pelo menos foi o que me pareceu). A moça usava expressões faciais exageradas demais na hora de cantar. As letras das músicas eram horríveis e repetitivas e a eram cantadas com toques parecidos com aqueles de karaokê.
Aí, quando eu já estava louca de vontade de ir embora, começou a parte boa do teatro (tive só que continuar rezando para a cantoria durar pouco). A história de Aristides (o melhor ator em cena, pena que não sei o nome dele), um homem pobre que tenta vender um caixão para o dono do pregão.
A mulher de Aristides foi atropelada e os médicos disseram que ela não sobreviveria. Para dar um enterro digno à mulher, ele pega adiantamento no serviço, vende móveis, faz empréstimo e compra o melhor caixão. Mas, para a surpresa dele, quando chega no hospital, a mulher sobreviveu e precisa de uma cirurgia. E, para isso, ele precisa pagar. A saída é vender o bem mais caro que ele possui. Exatamente: o caixão. E é assim, que ele encontra com o dono do pregão e o anjo da guarda.
Sem poder ajudá-lo, o dono do pregão chama a TV. A crítica ao espetáculo que a mídia faz em cima da desgraça e pobreza das pessoas é ótima. A jornalista exagera demais e faz com que o drama fique ainda maior. Ela inclusive põe o pobre do Aristides dentro do caixão para ficar mais cinematográfico e dar mais Ibope.
Depois que aparece na TV, Aristides recebe a visita de um deputado e de um grupo de mulheres que fazem caridade. Eles brigam entre si porque todos querem ajudá-lo. Depois, resolvem não ajudar mais e brigam entre si, para ver quem é que não vão ajudar. E assim, vão embora brigando.
Aí Aristides pergunta para o dono do pregão: “Será que isso vai mudar depois do dia 5 de outubro?”
E tem como resposta: “Vai mudar, sim, vai mudar para ...” e daí ele fala o nome de um monte de cidades goianas.
E pasmem, a peça termina aí...
Ótima idéia, só que mal aproveitada. Poderiam ter explorado bem mais a história de Aristides, que é o representante dos pobres na peça. Nele estão encarnadas a ineficiência do sistema de saúde, a falta de salários dignos para quem realmente trabalha e a falta de assistência social. É também, por meio da história dele, vemos o quanto a mídia e os políticos aproveitam e exploram a desgraça dos miseráveis. Mas, preocupada em ser engraçada demais a Exercício Produções Artísticas acaba fazendo algo raso.
Talvez, sem o lero-lero do começo e sem as músicas, desse mais tempo para desenvolver a história do Aristides e a peça ficasse mais interessante. Pra falar a verdade, o que quero dizer é: Transformem a ópera numa peça teatral pelo bem do público!


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terça-feira, 19 de agosto de 2008

O vendedor de flores

Hoje eu até poderia escrever uma história de amor. Dessas como nos filmes de Hollywood: o mocinho e a mocinha são separados por alguma força do destino. Anos depois eles se encontram e sentem o coração bater mais forte. Depois disso, eu que não sou boba nem nada, copiaria modelos de roteiro que deram certo e colocaria a mocinha em cenas de choro por causa do mocinho. Enquanto isso, ele, ao som de uma trilha sonora bem romântica (sim, no meu escrito teria música), pensaria na nobre dama. E como eu adoro finais felizes, depois de vários percalços, um dia, o mocinho ligaria para a mocinha e marcariam um encontro. Ela desliga o telefone, com o coração apertado de tanta alegria, e sai correndo ao encontro dele (que é claro, será num lugar bem bonito). Daí, ela chega no lugar e ele está de costas. Como é de clichê, ele se vira vagarosamente enquanto a música tema do casal começa a tocar. Ela dá um sorriso, os dois se beijam e ao final do beijo eles dizem: Eu te amo.
Mas estou sem inspiração para contar histórias românticas hoje. Então, por falta de romance pra contar, decidi falar da vida real.

OFF: O vendedor de flores entrou na casa de dança./ Era um senhor de idade, aparentava ter mais de sessenta anos./ Não vendeu muitas rosas./ Talvez duas ou três./ Mesmo assim, não parecia triste, nem reclamou da vida./ Dançou abraçado com as flores vermelhas e brancas./ Parecia que enquanto dançava não se preocupava com a aposentadoria minguada, os remédios para comprar, as contas para pagar ou o aluguel vencido./ Pelo visto não se preocupava nem mesmo com o dinheiro que não teria para comprar comida no outro dia./ Sambou, como qualquer pagante, e foi embora.//

Sorri e cantarolei: “Amanhã vai ser outro dia. Amanhã vai ser outro dia”.


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sábado, 16 de agosto de 2008

Édipo - Do destino não se pode fugir

Foto: Divulgação da peça - Layza Vasconcelos

Corpos que se entrelaçam, pele, sexo, volúpia, desejo. E o palco pega fogo! Mas se a paixão for demais, se os personagens forem arrebatadas do chão: Água!
De fogo e água é feito o espetáculo “Édipo”, do diretor Hugo Rodas. Uma releitura de “Édipo Rei”, de Sófocles. Em cena, e com ótimas atuações, estão os atores Adriana Veloso e Thiago Benetti.
Só para conhecer a famosa tragédia que conta a história de incesto entre mãe e filho valeria a pena assistir Édipo. Mas quem comparece ao teatro ganha mais que uma história bem narrada.
“Édipo” começa com o programa de TV da Esfinge. Essa mesmo, aquela que irá lançar o enigma que abrirá as portas de Tebas para que Édipo entre no reino e se case com a rainha viúva. E no show da Esfinge, o finalista é não mais, não menos que Édipo, o herói da nossa história.
Assim que vence o programa, Édipo se casa com a rainha Jocasta. Não sem antes surgirem questionamentos como: "Você se casaria com uma mulher bem mais velha que você?", "Você se casaria com um homem bem mais novo que você?"...
"E você, seria capaz de me amar?"
Perguntas que ecoam na platéia sem resposta...
Juntos, Jocasta e Édipo vivem anos felizes. Poemas sussurrados ao ouvido enquanto fazem amor.
Mas como é do destino do casal e do destino não se pode fugir, um dia se descobrem incestuosos. Fogo no palco movido pela paixão e o desejo. Logo depois, água. Água nos sonhos e planos.
E se descobrem, assim, como joguetes na mão de alguém maior. Marionetes nas mãos do destino que brinca com o rei e a rainha de um tabuleiro de xadrez.



Obs.: A peça “Édipo” está sendo apresentada todas as quintas-feiras do mês de agosto, no Centro Municipal de Cultura Goiânia Ouro, às 21 horas.




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quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Sou a favor das Yang Peiyi da vida

Foto retirada do site da BBC

A chinesa Yang Peiyi, de sete anos, emprestou sua voz para a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. No lugar da menina com dentes irregulares e gordinha, apareceu a magra e simpática Lin Miaoke, de nove anos, cantando em playback a música gravada por Yang. Motivo do feito (se é que podemos chamar assim): a comissão organizadora disse que precisavam de uma imagem perfeita para representar a China e que a imagem era de Lin e não de Yang. Leia-se nas entrelinhas: preconceito.
Sou a favor das Yang Peiyi da vida. Sou a favor das gordinhas, com dentes irregulares, com cabelos que não são lisos, das negras, das deficientes físicas, das que usam aparelho nos dentes. É que as pessoas ficam criando padrões fora do comum. Como se todas nós tivéssemos que ser iguais para ser bonitas. Daí, aparece toda essa histeria pelos padrões de beleza criados sei lá por quem!
De repente, parece que todo mundo tem que ser alta, magra, com bunda e seios grandes, cabelo liso, loira dinamarquesa. Hoje mesmo na academia, uma mulher, contava, indignada, que pagou mil e quinhentos reais em um tratamento contra estrias e não adiantou. E estria não faz parte do corpo da mulher?
É claro que não sou contra a vaidade. Sou contra os excessos. Sou contra esse militarismo do “eu tenho que ser perfeita”. Ninguém é e não seremos nunca, mesmo depois de quinhentas plásticas e mil regimes.
Acho ainda mais cruel quando o militarismo do “eu tenho que ser perfeita” é usado com crianças. E olha que quem está falando é alguém que sentiu na pele isso. Fui gordinha a minha infância inteira, até minha pré-adolescência. Com 11 anos eu pesava 60 quilos. E, desde bem pequena até essa idade, que foi quando eu emagreci com dieta e exercícios físicos, me lembro de pessoas zombando de mim porque era gorda.
Me sentia massacrada cada vez que alguém, principalmente da família, me discriminava. Ainda me lembro da minha irmã e de minhas primas, todas lindas e magras, me chamando de elefante, baleia, gorda e todas essas coisas que derrubam a auto-estima de qualquer um! Demorou muito para eu me perceber como realmente sou hoje. Por isso, fico imaginando como estará a pequena Yang Peiyi depois de não aparecer na abertura dos Jogos Olímpicos porque não se encaixa em um padrão de beleza que não foi ela quem criou.
Sou a favor das Yang Peiyi da vida. De pessoas comuns, como eu e você.



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terça-feira, 12 de agosto de 2008

Gatos abandonados

Esse fim de semana aconteceu algo que me fez pensar que existem pessoas capazes de gestos muito nobres e algumas, nem tanto.
Estava no carro com um amigo meu e, quando chegávamos perto da casa dele, ele parou e disse que tinha que olhar algo. Desceu e exclamou: “Eles ainda estão aqui”. Eram cinco gatinhos abandonados dentro de uma caixa de papelão num lote baldio. Eles estavam lá à mercê de outros animais, do sol e da fome.
Mesmo não gostando de gatos, fiquei penalizada com o estado dos bichinhos que deveriam ter no máximo cinco dias de vida. Choravam muito e um deles já havia morrido. Mesmo com dó dos filhotes, fiquei espantada quando meu amigo decidiu levá-los para casa e cuidar deles.
Se fosse eu, iria para casa e ligaria para a Sociedade Protetora dos Animais para que pegassem os gatos. Ele me disse que não poderia deixá-los lá e que um tinha morrido por causa dele, já que na noite anterior, quando os descobriu, não os levou para casa. Fiquei ainda mais surpresa: ele estava salvando os outros quatro, mas só conseguia pensar que um tinha morrido!
E não é que ele os levou para casa e deu até leite na boca dos bichos? Depois, ele os encaminhou para um abrigo de animais abandonados...
Daí, fico pensando em como algumas pessoas são capazes de gestos tão ruins como abandonar seres vivos indefesos só para que eles não causem problemas. E, por outro lado, fico pensando em como outras pessoas são capazes de gestos tão nobres como levar os “problemas” dos outros para casa e cuidar deles.


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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Cachorro de feira


Foto: Internet
“Chega! Não quero brincar disso mais não!”, ela grita pela janela. Lá embaixo, um grupo de choro canta ‘Carinhoso’.
Às vezes, ela se cansa de ficar sozinha. Nesses dias, tem vontade de fazer como aqueles cachorrinhos que são vendidos na feira. Aqueles mesmo que você passa e eles estão lá com olhinhos marejados e esbugalhados. E se você finge que não viu, eles ainda choram bem baixinho só para que não resista. E você não resiste e o acaricia. Daí, ele late, abana o rabinho e dá até piruetas.
Mas ela não está na posição de quem é escolhida e sim na de quem escolhe. E ela escolhe demais. Aí ela pensa: “Eu faço tudo errado sempre!”.



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quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O Jardim


Foto: Mayara Vila Boa

- Existe!
- Não existe e ponto!
E ela se sentiu a pior das criaturas. Era ainda menina quando o diálogo aconteceu e nunca se recuperou por completo. Sempre se pegava pensando em como o jardim que sonhara não poderia existir. Era tão simples quando pensado: nem muito grande, nem pequeno demais, do tamanho certo para caber milhões de flores, brancas, amarelas, vermelhas, todas as cores imagináveis, tinha fonte no meio, a água fazia um barulho que acalmava, o sol brilhava mais que em outros lugares e a sombra era muito fresca. “Mas então ele só existia nos filmes, nos romances e nos pensamentos de meninas bobas?”, ela estava abismada. Não sentia nem dor, nem alegria. Era um misto de surpresa com decepção: “Não existe”.
Cresceu mesmo sem jardim. Não cultivava flores, tinha medo dos espinhos. E continuava ouvindo que jardins não existiam. Às vezes, sonhava com eles, mas eram como nos filmes: bonitos e intocáveis.
Um dia chegou o jardineiro. Na verdade ele sempre esteve ali, só que mal se percebiam. Mas há momentos em que algo mágico acontece e o coração bate mais forte. Olharam para o lado e se viram. Ele prometeu que só construiria um jardim para a mulher que amasse. Ela esperou entre um afazer e outro.
O sol já estava alto naquela manhã e ela, que saia cabisbaixa, ouviu o canto de um pássaro: “Um pássaro!”. Ergueu a cabeça e se deparou com um jardim na porta de casa. O jardineiro estava lá plantando uma flor branca entre tantas outras coloridas. Era aquele o sinal: “Existe!”. Ela correu e o abraçou como nunca havia abraçado.
Mas um dia ele esqueceu de aguar as plantas. No outro, deixou a água aberta e matou algumas flores. Depois a fonte estragou. E ela não queria ver, não estava pronta para aquilo. Aguou as plantas. Brigou quando ele não desligou a torneira. Tentou consertar a fonte. Nada adiantou. Um dia ele foi embora.
Ela, sem entender, correu para o jardim e, no auge do desespero se abraçou com algumas flores. Ouviu um barulho estranho. A textura também era diferente daquela que deveria ter uma flor. Olhou bem de perto e viu que estavam amareladas. Tocou em uma flor e ela amassou. Que espanto: “São de papel!”.
Percorreu todo o jardim arrancando uma a uma. Eram flores de papel. E ela era apenas uma menina boba achando que jardins existiam na vida real: “Não existem e ponto”. Transformou o jardim em deserto. Sentou-se ao sol e deixou-se queimar. Queria ser dura e árida como aquela areia. Apareceram outros se dizendo jardineiros. E ela, sentada no seu trono banhado de sol apenas repetia: “Jardins não existem”.
Até que um dia, quando passeava imponente com seu manto de rainha:
- O céu está bonito hoje, não é?
- É!
Ela saiu apressada. Não queria conversa. Com certeza era outro alguém que, ao ver o deserto pelas frestas do portão queria o posto de jardineiro. Não tinha tempo e, afinal de contas, jardins não existem.
Quando achou que o havia despistado, eis que ele aparece em sua frente:
- Não quer olhar o céu comigo?
- Não!
Já estava cansada...
- É que durante o dia tem o sol, as nuvens e os pássaros que voam. E a noite tem a lua e as estrelas. Quanta coisa queria te mostrar... Olhe! Está vendo aquela constelação?
Ela sorriu. E o sorriso fez-se gargalhada... Ele também sorriu e as gargalhadas se juntaram.
Os olhos de um olharam no fundo dos olhos do outro e se viram. Ele se disse forasteiro: “Com certeza veio de cavalo, submarino, voando nas asas de um dragão ou de carona com algum cometa”, ela pensou.
E então veio a pergunta:
- Quais são seus sonhos?
Naquele momento ela percebeu que não havia mais sonhos, que eles haviam sido arrancados com as flores e queimados ao sol. Ela se viu ainda criança e teve a certeza que eles começaram a morrer ali: “Não existe e ponto!”.
Ela olhou para o lado, sorriu, tentou disfarçar. E ele perguntou novamente. Ela disse dois ou três sonhos inventados ali na hora. Juntou cacos de sonho do passado com o que vivia no presente e, remendando, inventou sonhos que gostaria de ter, mas não tinha.
Ela ergueu os olhos e os dele estavam ali a fitando. As faces já bem próximas. A respiração ofegante. O coração disparado. Ele sussurra: “O que eu faço agora?”
- O que tem para se fazer... Ela responde.
E então, o beijo. Depois do beijo, um abraço e uma troca de olhares que disse tudo. Quando percebeu, já estavam sentados na varanda apreciando a sombra.
No dia seguinte, ao acordar, deparou-se com uma flor plantada no meio do deserto. Era um lírio alaranjado. Era a flor mais linda que havia visto. E estava ali sem que ela houvesse pedido para que alguém a plantasse.
A cada novo dia aparecia uma nova flor no lírio. E, as flores que morriam ao entardecer não faziam isso sem antes espalhar seu pólen. Em pouco tempo o deserto já estava cheio de flores. Havia se tornado um jardim nem muito grande, nem pequeno demais, do tamanho certo para caber milhões de flores, brancas, amarelas, vermelhas, todas as cores imagináveis, tinha uma fonte no meio, a água fazia um barulho que acalmava, o sol brilhava muito e a sombra era muito fresca.
Um dia, ela acordou em sua cama macia no quarto do alto do palacete. Os raios do sol deixavam ainda mais alva a colcha branca que a cobria. Ela sentiu tanto amor quanto nunca antes havia sentido. Ela acordou e as borboletas estavam lá. Haviam entrado pela janela.


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domingo, 3 de agosto de 2008

Faço-me saudade

Ontem assisti um espetáculo chamado Abrazos, da Cia. Teatral Martim Cererê. Era “um show musical sobre a alegria de ser brasileiro e latinoamericano”. Muito bom por sinal. Músicas que vão desde as modinhas aos tangos e textos muito bem escolhidos.
Como explica Marcos Fayad, as canções são como um abraço dado em toda a América Latina.
Os dois textos iniciais me marcaram muito. Ambos são do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Guardei bem esse nome para procurar depois na Internet e, para minha sorte, encontrei os dois textos tais como eu havia ouvido.

“- A uva - sussurou - é feita de vinho.
Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.” (A uva e o vinho, Eduardo Galeano)

Se a gente é feito de palavras, então, isso aqui é meu auto-retrato. Na verdade era essa a intenção mesmo.
Se hoje eu fosse uma palavra eu seria saudade.
“1. Lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoa ou coisa distante ou extinta. 2. Pesar pela ausência de alguém que nos é querido”. (Dicionário Aurélio).
Saudade com um abismo entre o S e o E. Saudade com o contorno das minhas letras redondas. Saudade com todas as sílabas.
Vi umas fotos suas, sonhei com você e deu saudade. Saudade de tudo aquilo que eu não vivi. Saudade das vezes que nos encontramos, dos nossos olhos fixos e abraços longos.

“Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
- O mundo é isso - revelou - Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos são bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar; e quem chega perto pega fogo.” (Eduardo Galeano).

Ainda me lembro da primeira vez que te vi. Peguei fogo. Aliás, na primeira, na segunda e até na terceira vez peguei fogo. Sempre pego. Não há como chegar perto de você sem que algo entre em combustão...


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sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Pessoas descartáveis ou Crianças sanguinárias

Um copo de vidro é lavado, enxugado, guardado. O dono cuida dele porque sabe seu valor e sua utilidade. Um copo descartável é usado e jogado fora. Só serve, mais nada.
Não sei não, mas parece que de tanto usar objetos descartáveis os seres humanos passaram a tratar uns aos outros como objetos descartáveis.

Um casal se encontra na balada. Ficam e nunca mais se falam.
Outro casal faz sexo casualmente.
Pais abandonam filhos à mercê da televisão.
Ex-marido manda matar a ex-mulher porque não admite que ela viva sem ele.
O namorado mata a namorada, vai para a festa e depois corta o corpo dela em pedaços e os joga no rio.
Um casal mata uma criança e joga o corpo dela pela janela.
O padrasto estupra a enteada com o consentimento da mãe dela.
Uma mulher tortura uma criança.
As crianças pisoteiam a zeladora da escola na saída para o recreio.
O menino decepa o dedo da professora com a porta do banheiro e ri.
Homens roubam um carro e arrastam, até a morte, um menino preso do lado de fora pelo cinto de segurança.
Vizinho mata vizinho por causa do lixo.

Será que em nenhum momento essas pessoas pensam no sofrimento que elas infringem às outras? Fico tentando imaginar o que passa na cabeça de seres humanos que tratam os outros como objetos descartáveis. Será que não vêem o outro como um ser humano igual a eles, com idéias, planos e sentimentos? Fico imaginando se eles colocam a cabeça no travesseiro e dormem como uma pedra ou se ficam pensando em como deve ter doído aquela agressão (física ou mental). Será que pensam na família das vítimas e nos sonhos despedaçados?
Nessas horas me lembro de uma vez quando ainda estava na faculdade e dava aulas de audiovisual para crianças de uma escola pública em um projeto da universidade. Eles tinham entre 10 e 12 anos e eu e uma colega estávamos ensinando para como fazer um roteiro. Eles eram muito criativos, mas todas as histórias eram violentas demais. Víamos claramente que era uma repetição do que eles viam onde moravam e também o que eles assistiam na TV.
Era bomba explodindo, tiros de metralhadora, sangue voando para todos os lados, acho que o que eles queriam de mais ameno para o roteiro eram umas facadas. Daí, eu perguntei: “Mas por que tanta violência?”. Um menino que deveria ser um dos mais novos da turma me respondeu: “Tia, porque nós somos sanguinários!”.
É isso aí, estamos criando crianças sanguinárias. Se a sociedade não recuperar alguns valores e deixar de tratar as pessoas como objetos descartáveis vamos continuar tendo assassinos como Mohamed (o que esquartejou a namorada) ou o Nardone (que jogou a filha da janela do sexto andar). Vamos continuar a ter vítimas como Mychelline (a que foi estuprada e morta à mando do ex-marido) ou Lucélia (a que era torturada em um prédio luxuoso de Goiânia). Estamos precisando de um pouco mais de respeito e responsabilidade emocional para com o outro.